E porque hoje, a revi, pude compreendê-la melhor
Postado por
Curiosa Qb
em sábado, 4 de agosto de 2007
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Na zona onde cresci havia pedófilos – uns velhos babados que começaram novos.
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Processando as minhas memórias, recordo-me que um deles era casado com uma amiga da minha avó. Recordo-me da senhora desabafar com ela em sussurro sem que eu entende-se o código, recordo-me da minha avó me alertar todos os dias para que se o fulano me chamasse eu não ir, recordo-me de a esposa dele me dizer para nunca ir a casa dele, nem a troco de guloseimas.
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Cumpri escrupulosamente os avisos de ambas, sem entender a causa dos mesmos na altura. Já adulta a razão foi clara.
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Anos mais tarde, a localidade acordou chocada. Tinha-se comprovado a pedofilia desse fulano e de outros comparsas, que todos os dias rezavam na missa das 7.
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A rapariga (irmã mais nova de um amigo) provinha de uma família sem estrutura, uma vizinha deu o alerta, a madrasta interveio denunciando, o pai alcoólico tentou negociar.
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Por mais que alegassem o papel social que desempenhavam na comunidade, os membros da mesma depressa fizeram o julgamento moral – não há falta de estrutura familiar que justifique tamanha violência - mantendo-se a ordem a pedido do pároco franciscano.
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Os dias passavam, e os pedófilos armadilhavam-se cativando apoiantes da sua inocência. Mais dias se passaram, a madrasta desesperava na falta de apoio legal, a rapariga afundava-se na clausura auto-imposta.
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À autoridade violenta do pai alcoólico, a madrasta apoiava-se nas comadres. A comunidade opinou: que se contacte a família da mãe falecida. Assim se decidiu, assim se cumpriu. A rapariga foi viver com eles. A sua vivência fez uma prima trocar de curso e ir para advocacia. Acabadas as formalidades da conclusão, arregaçou mangas e processou os velhos.
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Processo, julgamento, sentença dada. Os velhos nos seus 70 e 80 anos foram julgados culpados. O sénior já morreu, o outro cumpre pena.
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Hoje vi-a passados anos. Veio visitar os irmãos e dar a conhecer o filho. Falou comigo, contou-me como reaprendeu a viver, contou-me da ajuda da família que tinha e não conhecia, contou-me como se sente feliz, contou-me também do pavor que sente quando um homem desconhecido olha para o seu filho.
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Despediu-se, deu-me um sorriso. Seguiu caminho. Ficou-me a alegria misto de tristeza. Alegria por ela se ter reerguido, tristeza porque ninguém evitou o que ela jamais esquecerá.
E tal qual Mystic River, sinto que também eu, todos nós, aceitamos guloseimas.
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Nota: este desabafo foi publicado originalmente a 30.07.07 na Caixa de Comentários Do Portugal Profundo