A noção de criança e o seu desenvolvimento
Postado por
Clara Sousa
em sábado, 29 de setembro de 2007
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Na atenuação da pena aplicada a um abusador sexual de crianças, decidida pelo acórdão do STJ, de 3 de Maio de 2007, vários problemas se cruzam, como o grau de culpa do agente, os fins da pena, o bem jurídico protegido pela norma penal e a concepção de criança, sendo que todos estes conceitos assumem um carácter ideológico e dependem da pré-compreensão dos juízes. Sempre se digladiaram, ao longo da história, conservadores e liberais, em torno da criminalização/descriminalização do comportamento sexual humano, assim como direita e esquerda, no discurso quanto ao crime.
Mas a verdade é que, a valorização das crianças como pessoas e do seu direito a crescer em tranquilidade, sem interferências e abusos dos adultos, depende não de convicções políticas ou ideológicas, mas de um sentimento profundo dentro de cada adulto – a empatia com o sofrimento das crianças abusadas. É visível, na relevância atribuída à estigmatização do arguido, pelo STJ, em contraste com a despreocupação pela recuperação psicológica da criança vítima, uma mentalidade centrada nos interesses dos adultos e que ainda não compreendeu os danos psicológicos causados às crianças, pelos crimes de abuso sexual. Não estamos a discutir a inocência das crianças, porque não é esse o bem jurídico protegido pelas normas penais, como têm por tradição entender os Tribunais. O que está em causa é o direito das crianças ao livre desenvolvimento da sua personalidade, não se podendo afirmar que a perturbação desse desenvolvimento seja menor nos adolescentes.
A afirmação da infância como uma fase específica da vida dos seres humanos, em termos físicos e psicológicos, que dá lugar a uma protecção especial e ao reconhecimento de direitos específicos, constitui um passo recente na evolução da história, tendo o artigo 1.º da Convenção dos Direitos da Criança adoptado a noção, segundo a qual criança é todo o ser humano com menos de 18 anos de idade. Persistem, contudo, no paradigma judicial, concepções de infância contraditórias: uma noção de criança como propriedade dos pais, inerente à sentença de condenação do Sargento Luís Gomes, por sequestro, e uma noção de criança, como adulto em miniatura, capaz de autodeterminação sexual, perante um adulto, trinta anos mais velho, presente neste acórdão do STJ. Numa sociedade patriarcal, de domínio masculino, caracterizada por uma hierarquia entre adulto e criança, falar em colaboração de uma criança de treze anos, sexualmente abusada por um adulto, que os Tribunais reconhecem ser um pedófilo, como causa de atenuação da culpa deste, é esquecer que as crianças têm sido, ao longo da história, e continuam a ser, actualmente, um grupo social marginalizado, educado para a obediência ao adulto.
Os Tribunais desconhecem o perfil dos pedófilos e as técnicas que estes utilizam para fazer as crianças ter um papel activo no abuso, assim como o carácter epidémico do fenómeno do abuso sexual de crianças, que atinge 1 em cada 4 crianças do sexo feminino e 1 em cada 7 do sexo masculino, afectando, também, as crianças que pertencem à mesma comunidade da vítima, e que a psicologia considera, hoje, vítimas indirectas. Seria importante que os Tribunais, em vez de decidirem com base no seu senso comum, tivessem formação especializada nesta matéria.
A aplicação da figura do crime continuado ao abuso sexual de crianças é outra questão controversa do acórdão, mas que vinha já da decisão do Tribunal de 1.ª instância. O crime continuado permite que o autor de vários crimes, contra a mesma vítima, seja punido, não por todos os crimes praticados, mas apenas por um. Esta posição não é unânime e tem sido criticada, quando estão em causa bens jurídicos pessoais. Sem que isto signifique a negação do património humanista do direito penal, não podemos esquecer que, em termos de prevenção geral, a aplicação do crime continuado, tornando indiferente, para o autor do crime, a prática de 1 ou 20 crimes, deixa as vítimas desprotegidas, aumentando exponencialmente a sua vitimação. Por outro lado, o facto de as circunstâncias facilitarem a continuação do crime não atenua a culpa do abusador, pois é ele, conhecedor das conivências ancestrais que permitem a sua impunidade – e lembremo-nos dos abusos sexuais cometidos contra crianças da Casa Pia, durante décadas – que gera o silêncio das crianças, para continuar a abusar.
Mas a verdade é que, a valorização das crianças como pessoas e do seu direito a crescer em tranquilidade, sem interferências e abusos dos adultos, depende não de convicções políticas ou ideológicas, mas de um sentimento profundo dentro de cada adulto – a empatia com o sofrimento das crianças abusadas. É visível, na relevância atribuída à estigmatização do arguido, pelo STJ, em contraste com a despreocupação pela recuperação psicológica da criança vítima, uma mentalidade centrada nos interesses dos adultos e que ainda não compreendeu os danos psicológicos causados às crianças, pelos crimes de abuso sexual. Não estamos a discutir a inocência das crianças, porque não é esse o bem jurídico protegido pelas normas penais, como têm por tradição entender os Tribunais. O que está em causa é o direito das crianças ao livre desenvolvimento da sua personalidade, não se podendo afirmar que a perturbação desse desenvolvimento seja menor nos adolescentes.
A afirmação da infância como uma fase específica da vida dos seres humanos, em termos físicos e psicológicos, que dá lugar a uma protecção especial e ao reconhecimento de direitos específicos, constitui um passo recente na evolução da história, tendo o artigo 1.º da Convenção dos Direitos da Criança adoptado a noção, segundo a qual criança é todo o ser humano com menos de 18 anos de idade. Persistem, contudo, no paradigma judicial, concepções de infância contraditórias: uma noção de criança como propriedade dos pais, inerente à sentença de condenação do Sargento Luís Gomes, por sequestro, e uma noção de criança, como adulto em miniatura, capaz de autodeterminação sexual, perante um adulto, trinta anos mais velho, presente neste acórdão do STJ. Numa sociedade patriarcal, de domínio masculino, caracterizada por uma hierarquia entre adulto e criança, falar em colaboração de uma criança de treze anos, sexualmente abusada por um adulto, que os Tribunais reconhecem ser um pedófilo, como causa de atenuação da culpa deste, é esquecer que as crianças têm sido, ao longo da história, e continuam a ser, actualmente, um grupo social marginalizado, educado para a obediência ao adulto.
Os Tribunais desconhecem o perfil dos pedófilos e as técnicas que estes utilizam para fazer as crianças ter um papel activo no abuso, assim como o carácter epidémico do fenómeno do abuso sexual de crianças, que atinge 1 em cada 4 crianças do sexo feminino e 1 em cada 7 do sexo masculino, afectando, também, as crianças que pertencem à mesma comunidade da vítima, e que a psicologia considera, hoje, vítimas indirectas. Seria importante que os Tribunais, em vez de decidirem com base no seu senso comum, tivessem formação especializada nesta matéria.
A aplicação da figura do crime continuado ao abuso sexual de crianças é outra questão controversa do acórdão, mas que vinha já da decisão do Tribunal de 1.ª instância. O crime continuado permite que o autor de vários crimes, contra a mesma vítima, seja punido, não por todos os crimes praticados, mas apenas por um. Esta posição não é unânime e tem sido criticada, quando estão em causa bens jurídicos pessoais. Sem que isto signifique a negação do património humanista do direito penal, não podemos esquecer que, em termos de prevenção geral, a aplicação do crime continuado, tornando indiferente, para o autor do crime, a prática de 1 ou 20 crimes, deixa as vítimas desprotegidas, aumentando exponencialmente a sua vitimação. Por outro lado, o facto de as circunstâncias facilitarem a continuação do crime não atenua a culpa do abusador, pois é ele, conhecedor das conivências ancestrais que permitem a sua impunidade – e lembremo-nos dos abusos sexuais cometidos contra crianças da Casa Pia, durante décadas – que gera o silêncio das crianças, para continuar a abusar.
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A NOÇÃO DE CRIANÇA E A PROTECÇÃO DO SEU DESENVOLVIMENTO
in Primeiro de Janeiro 25 de Junho de 2007
Maria Clara Sottomayor
Docente da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa
http://www.oprimeirodejaneiro.pt/?op=pesquisa&de=2007-06-25&chave=&tema
Acórdão STJ 03-05-2007 in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/36ff137b7e48ef85802572d40037a5f0?OpenDocument
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Palavras-chave: Abuso sexual de crianças, Atenuação de pena, Crianças
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