INSULTO ÀS VÍTIMAS
Postado por
Clara Sousa
em domingo, 28 de outubro de 2007
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“O novo Código Penal consagra a figura do crime continuado, em relação aos crimes contra as pessoas, quando a vítima é a mesma. Tal conceito significa que o autor de vários crimes, contra a mesma vítima, é punido, não por todos os crimes praticados, mas apenas por um, sendo a medida da pena determinada pelo facto mais grave das várias actuações do agente.
A aplicação do crime continuado tem o seguinte resultado, como é visível num exemplo típico, retirado da nossa jurisprudência: um pai que, em várias ocasiões, abusou sexualmente da sua filha de 3 anos de idade, em datas compreendidas, entre Novembro de 2003 e Janeiro de 2005, é condenado, não por todos os factos praticados, mas por um crime continuado de abuso sexual de crianças, com uma pena de 3 anos de prisão, suspensa pelo período de 4 anos, o que significa que ficou em liberdade.
Decidir que é crime continuado torna indiferente, para o autor do crime, a prática de 1, 10 ou 50 crimes, contra a mesma criança, deixando as vítimas desprotegidas e aumentando exponencialmente a sua vitimação. Por último, abrindo-se a porta à suspensão da pena, não se realiza a protecção da criança, que tem de viver com medo do abusador e sujeita a nova vitimização.
É estranho que o legislador, tendo oportunidade, agora, na reforma penal, de alterar a lei, tenha voltado a consagrar esta figura, quando noutros países, já foi abandonada, como o caso da Alemanha. Para além disto, a figura nunca foi consensual, nem na doutrina nem na jurisprudência, e a sua origem histórica, no século XVI, foi limitada aos crimes patrimoniais, para evitar a pena de morte de quem praticasse três furtos.
Dir-se-á, contudo, que os juízes poderão recusar a aplicação do crime continuado, na decisão do caso concreto, entendendo que não houve diminuição da culpa do agressor, como sucede nos crimes sexuais, caracterizados pela premeditação e falta de empatia com o sofrimento da vítima. Mas a lei “abre a porta” à aplicação do crime continuado aos crimes sexuais, “porta” que um legislador cuidadoso com os direitos humanos das vítimas devia ter fechado, quando conhece o mau uso que alguma jurisprudência tem feito dela.
Condenar pela prática de um crime continuado significa uma sobrevalorização dos interesses do agente do crime, típica de sociedades patriarcais, de domínio masculino, e uma indiferença pelo sofrimento das vítimas de violência, vítimas que têm rosto, que o legislador, seguramente, não ignora: o rosto das mulheres e das crianças, em particular, das crianças vítimas de abuso sexual continuado, dentro da família e de instituições, cujo sofrimento tem sido equiparado ao das vítimas do Holocausto e ao dos veteranos da guerra do Vietname.”
Maria Clara Sottomayor
In Notícias Magazine
28 de Outubro de 2007
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Palavras-chave: Abuso sexual, Abuso sexual de crianças, Crime continuado, Direitos humanos, Lei, Novo Código Penal, Retrocesso, Tribunais
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