Catalina Pestana: "A demora do processo Casa Pia é patogénica”
Postado por
Maria Sá Carneiro
em domingo, 25 de maio de 2008
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Catalina Pestana revela ao CM a associação cívica Rede de Cuidadores para apoiar e acolher crianças em risco, que será apresentada no dia 1 de Junho. A ex-provedora da Casa Pia fala sobre o caso de pedofilia e lamenta que ainda não haja resultados do inquérito pela denúncia que apresentou há mais de um ano: “As redes continuam activas”, diz.
Correio da Manhã (CM)– Quem pode aderir à Rede de Cuidadores (RC)
Catalina Pestana (C.P.) – Qualquer cidadão com mais de 18 anos que apresente a proposta de candidato a sócio. Essa proposta será analisada e a resposta será sempre dada num prazo de dois meses. Também é possível pessoas colectivas aderirem como sócios da Rede de Cuidadores. Precisamos de tudo e de quase todos. Digo quase todos, porque só precisamos daqueles que saibam de que lado estão, que estão do lado das crianças. Se têm o pressuposto de que os miúdos pobres são fatalmente mentirosos, terão de se associar noutra estrutura qualquer porque aqui não é o seu lugar.
CM – Como é que a Associação pode ser ajudada?
C.P. – Precisamos de tudo e a primeira coisa de que precisamos é de pessoas, do País inteiro, com tempo, disponibilidade e determinação – a curto prazo teremos delegações a funcionar em algumas zonas do País onde existem já núcleos de sócios fundadores, incluindo as ilhas. Precisamos muito de espaços adequados para ter sempre disponível um porto de abrigo para crianças ou adolescentes – é mais difícil arranjar acolhimento para um rapaz de 14 anos numa situação de emergência do que para um bebé de três anos. Aceitamos de tudo: papel, material informático, móveis usados, etc...
CM – A Associação vai viver do voluntariado?C.P. – No início vai viver apenas do voluntariado. A médio prazo não sei.
CM – Quem é neste momento a RC?
C.P. - São avós reformadas, psicólogos no activo, médicos e médicas no activo, advogados e advogadas no activo, especialistas nacionais e internacionais – temos já o Fórum Cívico europeu que tem sede em Marselha e que aderiu através de uma das suas dirigentes.– Esta é uma rede que não quer nada com o Estado...– Não quer, de facto, dinheiros do Estado, mas quer tudo com o Estado. Estamos numa perspectiva de cooperação e não de competição. Somos uma associação cívica que tem em comum com o Estado a obrigação cívica de ajudar a cuidar dos mais frágeis, sendo que, em nosso entender, sócios fundadores, e por experiência própria, sabemos que o Estado não é bom cuidador. Os Estados não são bons cuidadores, mas porque representam os cidadãos têm obrigação de dar respostas. Nós estamos cá para cooperar com o Estado, em igualdade de circunstâncias, não queremos é depender do Estado. Se tivermos serviços para vender, vendemos ao Estado e aos privados, mas não queremos subsídios do Estado.
CM – Alguns políticos, nomeadamente do PS, aderiram à RC. Foi surpresa?
C.P. – Qualquer das pessoas ligadas ao PS ou a qualquer outra área política que aderira tem uma história pessoal de intervenção militante de muitos anos nas áreas dos mais desfavorecidos. A RC quer ser um dos grandes objectivos cívicos deste país. A RC é um objectivo que começa por ser nacional mas que tem de ser internacional, porque as redes de abusadores e de traficantes de crianças também são internacionais. Nós temos de aprender, em conjunto, a trabalhar em conjunto. Essas guerrinhas que parecem as guerrinhas desportivas diluem-se todas quando joga a Selecção. A RC quer ser a Selecção e à Selecção só vão os melhores de todos os clubes. Os melhores de todos os partidos também são os sócios da Associação.
CM – A RC é uma reacção às fragilidades na protecção das crianças, que o processo Casa Pia pôs a nu?
C.P. – Não sei se é uma reacção, mas nasceu no seio do processo Casa Pia. Nasceu quando nos confrontámos todos com leis inadequadas. Muita coisa mudou depois do processo Casa Pia e mudou para melhor. Hoje estamos muito mais atentos. Foi no contexto do processo Casa Pia que este país despertou para um problema que já tinha, mas que estava camuflado há dezenas de anos. Alguns de nós decidimos que mais silêncio não. Ninguém estava preparado em Portugal para um processo com esta complexidade.
CM – Quando a prevenção falha, como aconteceu no processo Casa Pia, o passo seguinte é a Justiça. Deixou de acreditar na Justiça?
C.P. – Que ideia! A Justiça é um conceito que se materializa no sistema judiciário, que é constituído por pessoas. Os homens e as mulheres que têm de aplicar a Justiça são iguais a nós, alguns têm muito bom senso, outros têm menos bom senso. Aprendi a respeitar a forma de actuação dos magistrados e eles aprenderam que o tempo de uma criança não é o tempo da Justiça. Nós que passámos por isto nunca mais seremos os mesmos a trabalhar.
CM – Disse uma vez que não há Justiça na espera. Acha que ao fim de quatro anos de julgamento haverá Justiça no processo Casa Pia?
C.P. – Claro que não. Das vítimas do processo Casa Pia quatro já têm filhos e podem ser chamados a tribunal a qualquer hora para, com os seus filhos ao colo, irem falar das crianças que eles foram, abusadas. A demora do processo Casa Pia é patogénica, cria doença. Ninguém pode libertar-se de um pesadelo que é reavivado todas as vezes que chega uma nova convocatória. A metodologia tem de ser alterada e havia lei que o permitisse. É bom que não esqueçamos: não houve audição para memória futura porque os advogados dos arguidos não deixaram. O sistema não permitiu que eles fossem protegidos.
CM – Depois da demora do processo fez uma nova denúncia há mais de um ano...
C.P. – Pois... fiz a quem devia.
CM – Ao fim de um ano, e depois do que se aprendeu com o processo Casa Pia, já esperava resultados?
C.P. – Pois não sei se aprenderam todos. Há vários ritmos de aprendizagem, como acontece com as crianças. Na Justiça também é capaz de haver uns que acreditam que já sabem tudo e que não querem aprender, mas lamento porque as redes continuam a funcionar.
CM – Na Casa Pia?
C.P. – Neste momento, para além da última que está em investigação, não tenho conhecimento de mais nenhuma, mas tenho conhecimento de outras redes que funcionam – não sei se com miúdos da Casa Pia se com outros – e foram dadas à Justiça, por outras pessoas que não eu, as últimas moradas conhecidas.
PERFIL
Catalina Pestana, de 62 anos, foi a primeira mulher a dirigir a Casa Pia. Com uma longa carreira ligada a causas sociais, foi a pessoa escolhida pelo então ministro Bagão Félix para dirigir a instituição, após rebentar o escândalo de pedofilia, em 2002. Ficou até se reformar, em Maio de 2007.
REDE DE CUIDADOS: ASSOCIAÇÃO QUER FAMÍLIAS PARA ACOLHER
Constituir uma rede de famílias "sem necessidades económicas para receber crianças em situações de emergência" é o primeiro e grande objectivo da Rede de Cuidadores (RC), que tem Catalina Pestana como uma das suas fundadoras e que será apresentada, simbolicamente, dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança.Com mais de 150 pessoas já associadas, designadamente personalidades de todos os quadrantes políticos e das mais diversas áreas da sociedade, a RC vai oficializar-se como associação destinada a apoiar e a acolher crianças em risco, financiada exclusivamente pela sociedade civil – donativos e quotas dos associados.
Além da constituição da rede de famílias, a Associação – cujos órgãos sociais serão integrados, entre outros, pelo psiquiatra Álvaro de Carvalho, Bagão Félix, o empresário José Roquette e Maria José Nogueira Pinto – tem já constituídos os núcleos de apoio psicológico e jurídico para crianças, jovens e respectivas famílias.
A médio prazo, está também prevista a criação de um número de telefone gratuito para contactos com a Associação e a construção de um "porto de abrigo transitório para situações de emergência agudas de saúde mental" de crianças, mas sobretudo de adolescentes.
"Porque é mais difícil arranjar acolhimento para um rapaz de 14 anos numa situação de emergência do que para um bebé de três anos", explica Catalina Pestana, sublinhando que a Rede de Cuidados já trabalha há nove meses e "corre o País inteiro".
A Associação, que irá depender nos primeiros tempos do voluntariado, terá um site na internet a partir do dia 2.
Até lá os contactos podem ser feitos através do e-mail rededecuidadores@gmail.com.
No dia 1, às 18h00, na Voz do Operário, realiza-se a Assembleia Geral Constituinte.
Ana Luísa Nascimento
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