EPISÓDIO IV – Novos "Mundos"...
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Pois é!!
Finalmente lá chegou o dia de exame da 4ª classe, onde tive de provar o meu aproveitamento.
Para além da professora, D. Maria José, sempre a passear pelo meio das carteiras, tinha pela frente uma folha de exame onde teria de mostrar o que valia. Desde o Português à Matemática, e aqui a minha memória não me ajuda, sei que fiquei aprovada para transitar para o ensino preparatório.
Passada essa fase, encontrava-me de férias! E estas tinham um sabor especial! Ia transitar para outra escola, outro ritmo de aprendizagem... toda a gente me dizia que era muito diferente...
Essas férias, saborosas e muito esperadas, significavam o meu crescimento: tinha 10 anos, a caminho de 11... a expectativa era enorme!!
Mas, para além disso, sabia que, durante aquele período de descanso, ia realizar uma tarefa de que gostava muito: ajudar o meu Pai na fábrica de botões.
Não fazia nada de especial... mas gostava de o observar a fazer botões de vários tamanhos, formas e cores.
Divertia-me!
O fabrico de botões, naquela época artesanal, era algo complexo e exigia método de trabalho e algum risco para o operador das máquinas. Uma distracção e lá se ia um dedo ou uma mão. Que me lembre nunca houve nenhum acidente de trabalho
A matéria-prima era formada por grandes placas de polyester: 50cmx20cm (umas originalmente brancas, outras de cores escuras e de várias espessuras). Estas eram cortadas, longitudinalmente, por uma moto-serra, em 2 placas menores, processo que facilitava o seu manuseamento.
Cada máquina de corte tinha dois terminais, a curta distância entre si. Num deles era colocado um adaptador, de vários tamanhos, que cortava a placa em pequenas rodelas – o botão em bruto... o outro terminal consistia num orifício oco, de tamanho ajustável, onde se encostavam as tais placas... a aproximação e a força, aplicada através de um torniquete em alavanca, fazia o corte da dita rodela.
Todo este processo se repetia até que a placa não permitisse cortar mais rodelas. O que restava da placa com os cortes era descartado.
Uma vez cortadas, as rodelas eram sujeitas à acção de outra máquina, também com vários adaptadores... um que as agarrava e segurava e outro que esmerilava ou dava forma ao modelo que se pretendia.
De seguida, as rodelas já modeladas, seguiam para outra máquina para que se lhe fizessem 2 ou 4 buracos simétricos, conforme o fim a que destinavam os botões.
Um penúltimo processo consistia em descarregar todos os botões num enorme tambor, que finalmente iria polir e dar brilho aos mesmos.
O que me dava mesmo um gozo incrível era, depois de assistir a tudo isto, encartar os botões!! De agulha enfiada em linha numa mão, um dedal no dedo médio, um cartaz, com 24 marcações, na outra mão... era ver-me ao despique com a minha mãe, para saber no final quantos cartões de botões cada uma tinha preenchido!!!
Era mesmo uma diversão!!!
Os dias iam-se passando entre a fábrica de botões, a praia ou um passeio pelas zonas mais interiores – Cacuaco ou Catete - no fim-de-semana.
Quando íamos ao Cacuaco, comíamos a tão saborosa “moambada”. Uma delícia, aquela “cola de sapateiro” acompanhada de frango ou galinha velha em molho de dendém (proveniente das bagas duma espécie de palmeira), engrossado com quiabos.
Bem... de fazer crescer água na boca só de pensar... A minha Mãe, para matarmos saudades, ainda chegou a confeccionar essa iguaria, diversas vezes... Infelizmente, por motivos de saúde, já não matamos essas saudades.
Terminadas as férias, ingressei na Escola Preparatória Emídio Navarro (posteriormente adaptada para Escola Industrial). Mais longe do que o Colégio, o meu Pai era obrigado a levar-me todos os dias.
Depois de todas a atribulações que passei naqueles quatro anos de escolaridade primária, via-me, agora defrontada com um ambiente totalmente diferente do anterior (onde estava confinada a uma sala de aulas): várias disciplinas, várias salas de aulas... tinha que me deslocar para sítios diferentes... um horário escolar... enfim, outro Mundo!
Quando entrei para a primeira aula, de apresentação dos professores, demarquei o meu território: uma carteira junto à janela.
As salas de aulas eram grandes e o fundo das mesmas estava vazio de carteiras. As janelas eram formadas por largas lâminas de vidro, que se podiam inclinar ou abrir, para que o ar entrasse ou o sol não batesse directo na cara, tal era o calor lá dentro.
No recinto exterior, em frente à entrada da Escola, todos os dias de manhã se encontravam as quitandeiras, mulheres ou crianças, que vendiam frutos tropicais (goiabas, bananas, mamões, etc), mandioca, “esticas” (uma espécie de doçaria, algo dura e estriada, tipo “churro”, de sabor mais ácido que doce, e que esticava quando trincado), e o saborosíssimo tambarindo... Hum... tenho tantas saudades!!
O tambarindo era uma fruta em forma de vagem, de casca globulada, acastanhada, e que uma vez descascado apresentava um interior meio viscoso, que se derretia na boca, deixando uma semente. Era a minha delícia... perdia-me a degustá-lo!!
Todos os dias gastava 2 centavos na compra duma vagem às tais quintandeiras. Ainda me lembro do preço!
Já o comprei aqui... mas não tem o mesmo sabor! E o preço!? Bem... nem se lhe pode chegar: 3,90€!!
O passado atribulado dos anos anteriores foram cruciais para que eu pudesse encarar estas novas responsabilidades com a autodisciplina que era preciso e que esse novo Mundo exigia. Estava sempre nos lugares de destaque quer no aproveitamento quer no comportamento.
Dois anos passados e novo “salto”... Estava no ensino secundário!... Mais exigências, mais tempo de estudo... Mas eu gostava!!
Desta vez o cenário era o Liceu D. Guiomar de Lencastre. Só para raparigas!
Ali, o meu rendimento escolar não foi tão notável... a instabilidade do país começou a fazer-se sentir: tinha de ficar em casa, muitas vezes... Tornara-se perigosa a deslocação para muitos locais!
O 25 de Abril tinha estalado em Portugal e as suas repercussões começavam a chegar a Angola e restantes ex-colónias.
Devo confessar que foi a partir dessa altura que me foi apresentado o 1º cigarro, que experimentei no meio de muitas tossidelas e às escondidas, claro.
Até hoje, é o meu companheiro de “carteira”!!