Entregue o papel...
Postado por
Anónimo
em quinta-feira, 30 de agosto de 2007
...
“- Entregue o papel, espere lá fora, feche a porta ao sair. Nós já a chamamos…”
Assim, secamente, sou recebida por uma funcionária quando me preparava para realizar um exame radiográfico, num serviço de Urgência, no Hospital da minha área de residência.
Fiz o que ordenaram: entreguei o papel (uma requisição médica de um exame radiológico aos rins (sou uma pessoa muito achacada a cólicas renais, e no auge da dor sou obrigada a recorrer ao hospital), e com uma dor nauseante e aguda, sentei-me na pequena salinha de espera.
Esperei cerca de 45mn, sem que a tal chamada prometida se concretizasse e me despachasse daquele local onde a dor alheia ao nosso lado não tem valor, quando comparada com a nossa.
Nisto, numa cena repetitiva, o mesmo monólogo se estabelece entre um outro doente e a mesma funcionária:
“- Entregue o papel, espere lá fora, feche a porta ao sair. Nós já a chamamos…”
Desta vez o interlocutor arrisca dizer em jeito de esclarecimento:
- Minha senhora, É URGENTE!!! Essa paciente está com muita falta de ar e precisa de fazer vapores para ficar aliviada. O sr. dr. pediu esse exame para avaliar a capacidade respiratória e prever a quantidade de oxigénio necessário. Se a pudesse atender já…
- Aqui todos os doentes são urgentes. Aguarde a sua vez – responde a funcionária de novo com aquele tom seco, com que me atendeu e de quem está a cumprir uma obrigação, sem um “se faz favor”.
Porque continuasse a demorar a chamada, abeirei-me da mesma funcionária e perguntei se ainda ia demorar muito, questão que coloquei já vergada sobre a opressão da dor horrível e insuportável que me atazinava.
- Aquele senhor, há pouco, entregou um pedido para uma doente com falta de ar, agora vem a senhora reclamar! Isto hoje está bonito, está! A continuarmos assim, quem vai sair daqui doente sou eu!!!
-Mas, pode esclarecer-me sobre esta demora?! Já aqui estou há cerca de uma hora e não fui atendida. Já não aguento mais as dores e sinto-me a desmaiar.
- Ó minha senhora, nós não temos de atender só doentes que se nos dirigem a pé. Temos outros… temos outros... Saiu daqui um traumatizado grave e isso demora muito, sabe?.
- Mas nesses casos não podiam avisar os outros doentes do motivo de espera tão prolongada?! Nós não sabemos o que se passa aqui dentro.
Comecei a sentir as pernas a fraquejar e tive de me agarrar ao balcão para não desfalecer.
A funcionária ao aperceber-se da situação, mandou-me entrar na sala de Radiologia para finalmente realizar a tarefa requisitada.
Contornando a divisória entre a recepção e a sala de exames, vejo surgir à minha frente a dita funcionária com ar alucinado. Sem olhar para mim:
- Deite-se aí, de barriga para cima e desça as calças até aos joelhos… (ao mesmo tempo que se dirigia para trás de um vidro e carregava em algo, que pelo som, seriam teclas).
De novo na minha direcção, agora com uma placa na mão, que colocou numa espécie de gaveta metálica, colocou o aparelho sobre mim e acendeu uma luz (se calhar para ver melhor os meus rins?), fechou a dita gaveta e dirigindo-se de novo para trás do vidro, e já de costas, murmurou em voz alta:
- Quando eu disser pare de respirar…
Zuuu biiiipp
- Pronto, minha senhora, já se pode levantar e voltar para o médico que a atendeu…
Enquanto puxava de novo as calças para a cinta e aproveitando os breves instantes da sua presença ainda na sala de exames, disse em voz alta:
- Muito obrigada. Obrigada, sobretudo pela sua simpatia!
Ela voltou-se para mim, muito corada, fitou-me, voltou as costas e avançou para o compartimento contíguo.
Assim, secamente, sou recebida por uma funcionária quando me preparava para realizar um exame radiográfico, num serviço de Urgência, no Hospital da minha área de residência.
Fiz o que ordenaram: entreguei o papel (uma requisição médica de um exame radiológico aos rins (sou uma pessoa muito achacada a cólicas renais, e no auge da dor sou obrigada a recorrer ao hospital), e com uma dor nauseante e aguda, sentei-me na pequena salinha de espera.
Esperei cerca de 45mn, sem que a tal chamada prometida se concretizasse e me despachasse daquele local onde a dor alheia ao nosso lado não tem valor, quando comparada com a nossa.
Nisto, numa cena repetitiva, o mesmo monólogo se estabelece entre um outro doente e a mesma funcionária:
“- Entregue o papel, espere lá fora, feche a porta ao sair. Nós já a chamamos…”
Desta vez o interlocutor arrisca dizer em jeito de esclarecimento:
- Minha senhora, É URGENTE!!! Essa paciente está com muita falta de ar e precisa de fazer vapores para ficar aliviada. O sr. dr. pediu esse exame para avaliar a capacidade respiratória e prever a quantidade de oxigénio necessário. Se a pudesse atender já…
- Aqui todos os doentes são urgentes. Aguarde a sua vez – responde a funcionária de novo com aquele tom seco, com que me atendeu e de quem está a cumprir uma obrigação, sem um “se faz favor”.
Porque continuasse a demorar a chamada, abeirei-me da mesma funcionária e perguntei se ainda ia demorar muito, questão que coloquei já vergada sobre a opressão da dor horrível e insuportável que me atazinava.
- Aquele senhor, há pouco, entregou um pedido para uma doente com falta de ar, agora vem a senhora reclamar! Isto hoje está bonito, está! A continuarmos assim, quem vai sair daqui doente sou eu!!!
-Mas, pode esclarecer-me sobre esta demora?! Já aqui estou há cerca de uma hora e não fui atendida. Já não aguento mais as dores e sinto-me a desmaiar.
- Ó minha senhora, nós não temos de atender só doentes que se nos dirigem a pé. Temos outros… temos outros... Saiu daqui um traumatizado grave e isso demora muito, sabe?.
- Mas nesses casos não podiam avisar os outros doentes do motivo de espera tão prolongada?! Nós não sabemos o que se passa aqui dentro.
Comecei a sentir as pernas a fraquejar e tive de me agarrar ao balcão para não desfalecer.
A funcionária ao aperceber-se da situação, mandou-me entrar na sala de Radiologia para finalmente realizar a tarefa requisitada.
Contornando a divisória entre a recepção e a sala de exames, vejo surgir à minha frente a dita funcionária com ar alucinado. Sem olhar para mim:
- Deite-se aí, de barriga para cima e desça as calças até aos joelhos… (ao mesmo tempo que se dirigia para trás de um vidro e carregava em algo, que pelo som, seriam teclas).
De novo na minha direcção, agora com uma placa na mão, que colocou numa espécie de gaveta metálica, colocou o aparelho sobre mim e acendeu uma luz (se calhar para ver melhor os meus rins?), fechou a dita gaveta e dirigindo-se de novo para trás do vidro, e já de costas, murmurou em voz alta:
- Quando eu disser pare de respirar…
Zuuu biiiipp
- Pronto, minha senhora, já se pode levantar e voltar para o médico que a atendeu…
Enquanto puxava de novo as calças para a cinta e aproveitando os breves instantes da sua presença ainda na sala de exames, disse em voz alta:
- Muito obrigada. Obrigada, sobretudo pela sua simpatia!
Ela voltou-se para mim, muito corada, fitou-me, voltou as costas e avançou para o compartimento contíguo.
Saí.
Ouvi chamar novo paciente: a senhora que tinha muita falta de ar!!!
Já mais serena, lembrei-me de um poema de Sophia Andresen de Mello Breyner:
E eu caminhei no Hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica quando não há cor
E onde a luz é cinzenta
E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um Deus
Não perguntei por ti à pedra, meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento, e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um Deus eu caminhava
Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida.
O Hospital e a Praia
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