O CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL E A LIBERDADE DE CIRCULAÇÃO DAS MULHERES E DAS CRIANÇAS
Postado por
Clara Sousa
em domingo, 30 de setembro de 2007
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Os assédios sexuais e os abusos verbais são praticados, frequente e impunemente, nas ruas, por homens desconhecidos, em relação a mulheres e crianças do sexo feminino. Trata-se de um fenómeno subtil e que atinge a maior parte das raparigas na adolescência, quando circulam nas ruas, nos percursos escola-casa, quando visitam amigas ou se dirigem a centros de actividade extra-escolares etc. O assédio sexual abrange comportamentos banalizados e até considerados jocosos e inofensivos, pela sociedade, e que não são percepcionados como crime, por exemplo, propostas sexuais, palavras obscenas, ameaças, toques no seu corpo, que, em virtude do contexto, adquirem uma intencionalidade, de tipo sexual, ofensiva e abusiva da liberdade. O facto de as raparigas, no seu quotidiano, terem de enfrentar, sistematicamente, estas situações, limita muito a sua liberdade de participação no espaço público, assim como a sua autonomia, condicionando o livre desenvolvimento da sua personalidade. A vida das crianças, mesmo daquelas que não são abusadas no meio familiar, está sempre marcada pelo medo da violência sexual e pela experiência de serem assediadas nas ruas.
As ciências sociais já demonstraram que esta situação produz, nas raparigas, danos psíquicos profundos e constitui uma forma de as excluir do espaço público, restringindo a sua liberdade de circulação nas ruas, com tranquilidade e segurança, criando, também, consequências danosas para a sociedade como um todo. Esta perspectiva das mulheres nunca foi articulada na lei, feita por homens, que nunca tiveram esta experiência e que quando acompanham as suas mulheres ou filhas na rua, também não a presenciam, pois os agressores não molestam as mulheres, que circulam nas ruas acompanhadas por homens. Por outro lado, as próprias raparigas estão habituadas a aceitar, como naturais, este tipo de comportamentos dos homens, e não têm consciência das limitações que tal representa no exercício dos seus direitos e no desenvolvimento da sua personalidade. Se a sociedade trivializa e silencia estes crimes, as próprias vítimas são incentivadas à mesma atitude, e não se queixam a ninguém, silenciando dentro de si a sua mágoa e raiva. Num inquérito feito a estudantes de Direito do sexo feminino, nos EUA, verificou-se que a maior parte das mulheres reprime a recordação destes eventos passados, sobretudo, na adolescência, o que se explica pelo facto de que tal é tão comum na sua vida diária, que é considerado uma parte inevitável da vida. Contudo, quando são chamadas a relatar as suas experiências, exprimem-se com revolta e mágoa – exprimem o seu “eu magoado”.
A sociedade, induzindo as mulheres e as crianças ao silêncio, impõe-lhes a auto-percepção de que são cidadãs de segunda categoria. Creio que, o novo tipo legal de crime de importunação sexual, introduzido pela Reforma Penal (art 171.º do Código Penal), para além de ter efeitos positivos no plano simbólico, será de utilidade prática. No direito vigente actual, magistrados mais legalistas tendem a fazer uma interpretação demasiado restritiva do conceito de acto sexual de relevo, previsto nos tipos legais de abuso sexual de crianças e de coacção sexual, deixando desprotegidas as vítimas. Reconhecemos, contudo, que, só por si, as mudanças legais não mudam comportamentos, e que, para serem eficazes, devem ser acompanhadas de campanhas de consciencialização das raparigas, quanto aos seus direitos, e dos rapazes, quanto aos danos sociais causados pelo machismo cultural, assim como quanto à sua responsabilidade na construção de um mundo mais justo.
Numa sociedade em que as crianças e as mulheres vivem um quotidiano dominado pelo medo do assédio e da violação e em que são obrigadas a restringir a sua liberdade de escolha e de movimentos não pode haver igualdade. É de salientar, ainda, que são as vítimas de abuso sexual na infância ou crianças da família das vítimas, que mais sofrem com o abuso verbal e o assédio nas ruas, tendo que aprender a viver com o medo da violação, como uma condição normal da sua vida. Trata-se de uma experiência vivida quase exclusivamente por crianças e mulheres, o que cria profundas discriminações, a todos os níveis, entre homens e mulheres, durante toda a vida destas, no aspecto pessoal, profissional, intelectual e de participação no espaço público.
Há uma forte ligação entre a experiência do assédio sexual nas ruas e a subordinação das mulheres em todos os domínios da sociedade, da política e da arte. Como afirma ADRIENNE RICH, “A erosão do eu, da sensação de uma mulher acerca do seu direito de ocupar o espaço e de andar livremente no mundo, é profundamente relevante para a educação. A capacidade de ter um pensamento independente, de assumir riscos intelectuais, de nos afirmarmos mentalmente, é inseparável da forma física de estar no mundo, dos nossos sentimentos de integridade pessoal. Se é perigoso para mim andar sozinha à noite, quando venho da biblioteca, porque sou uma mulher e posso ser violada, como consigo ser dona de mim, como sentir-me exuberante, enquanto estou sentada a trabalhar na biblioteca?"
As ciências sociais já demonstraram que esta situação produz, nas raparigas, danos psíquicos profundos e constitui uma forma de as excluir do espaço público, restringindo a sua liberdade de circulação nas ruas, com tranquilidade e segurança, criando, também, consequências danosas para a sociedade como um todo. Esta perspectiva das mulheres nunca foi articulada na lei, feita por homens, que nunca tiveram esta experiência e que quando acompanham as suas mulheres ou filhas na rua, também não a presenciam, pois os agressores não molestam as mulheres, que circulam nas ruas acompanhadas por homens. Por outro lado, as próprias raparigas estão habituadas a aceitar, como naturais, este tipo de comportamentos dos homens, e não têm consciência das limitações que tal representa no exercício dos seus direitos e no desenvolvimento da sua personalidade. Se a sociedade trivializa e silencia estes crimes, as próprias vítimas são incentivadas à mesma atitude, e não se queixam a ninguém, silenciando dentro de si a sua mágoa e raiva. Num inquérito feito a estudantes de Direito do sexo feminino, nos EUA, verificou-se que a maior parte das mulheres reprime a recordação destes eventos passados, sobretudo, na adolescência, o que se explica pelo facto de que tal é tão comum na sua vida diária, que é considerado uma parte inevitável da vida. Contudo, quando são chamadas a relatar as suas experiências, exprimem-se com revolta e mágoa – exprimem o seu “eu magoado”.
A sociedade, induzindo as mulheres e as crianças ao silêncio, impõe-lhes a auto-percepção de que são cidadãs de segunda categoria. Creio que, o novo tipo legal de crime de importunação sexual, introduzido pela Reforma Penal (art 171.º do Código Penal), para além de ter efeitos positivos no plano simbólico, será de utilidade prática. No direito vigente actual, magistrados mais legalistas tendem a fazer uma interpretação demasiado restritiva do conceito de acto sexual de relevo, previsto nos tipos legais de abuso sexual de crianças e de coacção sexual, deixando desprotegidas as vítimas. Reconhecemos, contudo, que, só por si, as mudanças legais não mudam comportamentos, e que, para serem eficazes, devem ser acompanhadas de campanhas de consciencialização das raparigas, quanto aos seus direitos, e dos rapazes, quanto aos danos sociais causados pelo machismo cultural, assim como quanto à sua responsabilidade na construção de um mundo mais justo.
Numa sociedade em que as crianças e as mulheres vivem um quotidiano dominado pelo medo do assédio e da violação e em que são obrigadas a restringir a sua liberdade de escolha e de movimentos não pode haver igualdade. É de salientar, ainda, que são as vítimas de abuso sexual na infância ou crianças da família das vítimas, que mais sofrem com o abuso verbal e o assédio nas ruas, tendo que aprender a viver com o medo da violação, como uma condição normal da sua vida. Trata-se de uma experiência vivida quase exclusivamente por crianças e mulheres, o que cria profundas discriminações, a todos os níveis, entre homens e mulheres, durante toda a vida destas, no aspecto pessoal, profissional, intelectual e de participação no espaço público.
Há uma forte ligação entre a experiência do assédio sexual nas ruas e a subordinação das mulheres em todos os domínios da sociedade, da política e da arte. Como afirma ADRIENNE RICH, “A erosão do eu, da sensação de uma mulher acerca do seu direito de ocupar o espaço e de andar livremente no mundo, é profundamente relevante para a educação. A capacidade de ter um pensamento independente, de assumir riscos intelectuais, de nos afirmarmos mentalmente, é inseparável da forma física de estar no mundo, dos nossos sentimentos de integridade pessoal. Se é perigoso para mim andar sozinha à noite, quando venho da biblioteca, porque sou uma mulher e posso ser violada, como consigo ser dona de mim, como sentir-me exuberante, enquanto estou sentada a trabalhar na biblioteca?"
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Maria Clara Sottomayor
Extracto de «O método da narrativa e a voz das vítimas de crimes sexuais»
In Revista Electrónica de Direito Constitucional & Filosofia Jurídica, Vol. I, 2007
http://constitutio.tripod.com/id7.html
Extracto de «O método da narrativa e a voz das vítimas de crimes sexuais»
In Revista Electrónica de Direito Constitucional & Filosofia Jurídica, Vol. I, 2007
http://constitutio.tripod.com/id7.html
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Palavras-chave: Assédio sexual nas ruas, Igualdade, Liberdade de circulação
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