«Nunca fui feliz, nem serei» - Casa Pia II
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."Um ateliê em Lisboa, frequentado por artistas e outras figuras conhecidas, está a ser investigado pelo Ministério Público no âmbito do novo caso de abusos sexuais envolvendo a Casa Pia.
Um jovem de 14 anos, acolhido no Lar Cruz Filipe, já prestou declarações no inquérito, que é conduzido pelo procurador João Guerra (magistrado que investigou os casos de 2002).
O jovem acusa um educador, Paulo R., o qual servirá de intermediário, conduzindo os alunos ao referido ateliê. Este caso é muito recente e não constava da denúncia feita em Maio por Catalina Pestana.
As denúncias de José (nome fictício) são corroboradas por outros jovens contactados pelo SOL e que relatam os abusos sofridos. Os testemunhos fazem ainda referência ao caso de 2002: Manuel, de 16 anos, refere ter sido levado por Carlos Silvino a uma casa em Lisboa – e diz-se disposto a testemunhar às autoridades.
O educador Paulo R. – com quem o SOL tentou falar, sem êxito – foi suspenso na segunda-feira. A direcção da Casa Pia instaurou também um processo disciplinar a uma educadora por violação das regras de vigilância na instituição.
Joaquina Madeira, presidente da direcção da Casa Pia, disse quinta-feira, na RTP, que não se está perante um problema nacional. Admitiu que continua a haver casos de abusos, mas não dentro da instituição, o que é contrariado pela investigação do SOL.
O Inverno tarda em chegar: nem frio, nem chuva. São quatro da tarde e o calor bate como se fosse Verão. À porta da escola Francisco de Arruda, na Ajuda, o porteiro, numa guarita, sabe tudo sobre os alunos – desde a hora da entrada à hora da saída, se faltaram ou se ainda estão presos às traquinices próprias das crianças.
As palavras do homem batem certo com a saída de José (nome fictício, tal como os de todos os outros jovens que adiante se referem). A mochila verde do puto submerge-o. Fez 14 anos em Outubro, mas o ar franzino e a altura, abaixo da sua faixa etária, rouba-lhe no mínimo dois anos. Vem na boleia da garotada do 5.º ano que vai saindo da escola e o cabelo oxigenado distingue-o dos outros. A caracterização é uma defesa dos jovens dos lares da Casa Pia.
Testemunha principal
José é a testemunha principal de mais um escândalo de abusos sexuais a jovens da instituição e já prestou depoimento no Ministério Público.
José está de castigo. Foi assim, aliás, desde que nasceu. Faz parte de um grupo de rapazes do Lar Cruz Filipe que no último ano anda fora dos eixos. O lar pertence a Santa Catarina, colado ao Instituto Jacob Rodrigues Pereira, que se dedica à educação de jovens surdos e também à de alunos com dificuldades de aprendizagem.
Os rapazes faltam às aulas sem que alguém os controle. Na Casa Pia, há décadas albergue de pedófilos nacionais e estrangeiros, mais uma vez ninguém soube ler os sinais de perigo que o grupo deixava. Com o carimbo de mau comportamento, um deles foi expulso por bater em Amândio Coutinho, antigo assessor da ex-directora do Instituto Jacob, Maria Augusta Amaral.
Outro rapaz está suspenso pelas mesmas razões, só que as agressões calharam a um professor. E há ainda um aluno que fugiu.
José, o mais novo, depois de ter feito rebentar um extintor, foi mudado de lar – deixando para trás Clemente, o irmão mais velho e a única bengala de afecto.
José desce a rampa da escola tagarelando com os outros colegas. A jornalista do SOL apenas lhe merece uns segundos de desconfiança. No café em frente, regala-se com uma tosta mista que acompanha com Coca-Cola.
Às primeiras perguntas, as fartas pestanas, como cortinas de um palco em desuso, protegem-lhe a vergonha. Aos poucos solta-se das amarras do medo e rebobina um filme mau. Conta que tudo começou no Verão, ainda tinha 13 anos. Com o irmão Clemente e o amigo deste, Renato, começou a frequentar um ateliê em Lisboa, onde trabalham vários artistas plásticos.
Renato, 16 anos, através de um educador do Lar Cruz Filipe, arranjara ali um gancho. O educador, Paulo R., a quem não compete a orientação profissional dos casapianos, transgredia as regras da casa.
No ateliê, José passa a ser presença frequente a partir das quatro da tarde. Aí vê o primeiro filme porno: «António, o patrão do Renato, tinha filmes num armário. Cheguei a ver um em que homens violavam mulheres e depois matavam-nas. Depois abusavam de homens e faziam-lhes o mesmo».
Foi o colega do lar quem um dia lhe disse: «O António gostava de curtir contigo». Aos poucos, o homem foi avançando. José solta as lágrimas: «Tocava-me na pilinha e dava-me tapas no rabo».
Decidiu comentar o caso com o educador, que assistia, sorrindo: «Respondeu-me que não tinha nada de mal, que ele era sempre assim». Às vezes, era «o mestre» (como também chamam a António) quem aparecia no lar Cruz Filipe.
A seguir ao jantar, enquanto a rapaziada via futebol, o mestre subia para a zona dos quartos com o educador e dirigia-se ao pequeno: «Anda, não queres dar uma quequinha?».
Um dia, foram convidados para uma festa no ateliê. A sorte do rapazito estava nas piores mãos. José tem o ‘selo’ da maioria dos casapianos: foi internado com o irmão no Instituto Jacob com apenas quatro anos. O pai, Alberto, trabalhava nas obras. A mãe, Maria, ganhava uns tostões fazendo limpezas. Ela tinha oito filhos e ele tantos que lhes perdera a conta. Em casa, quando o dinheiro falha, o álcool impera. O pai – que agora está preso por ter violado uma sobrinha de 13 anos da nova companheira – utilizava o cinto e tudo o que lhe viesse à mão para flagelar os garotos. A mãe, sempre em ajustes com a vida, denuncia o caso à polícia e o Tribunal de Menores coloca-os ao abrigo do Estado. Um mal pior.
Festa e violação no ateliê
José enrola a fala, os olhos claros ensombram-se à medida que empurra a história. Estava na festa, e nas traseiras do ateliê assam-se sardinhas. Havia muita gente importante, até políticos. Folheia uma revista da Casa Pia e reconhece alguns. Um é conhecido por 'avô' e outro conhece-o de o ver a comprar jornais no quiosque em Belém: «Dava-nos revistas, mas nunca me fez mal».
Entre as várias mesas na festa, uma era só destinada ao seu lar. Paulo R. e a educadora Sandra estavam com duas raparigas menores e com Manuel, um colega de José. Os mais velhos serviam as bebidas e ajudavam no fogareiro. Cantava-se o fado, quando o educador lhe disse para tomar um medicamento. O miúdo estranhou: «Mas depois vou ficar com sono». E ficou. Buprex é um analgésico para dores violentas e ao mesmo tempo um opiáceo. Não é aconselhável a menores de 18 anos e provoca perturbações do foro psicológico e confusão mental.
José tombava de sono e o educador, depois de contornar uma escultura que se encontra no início da escadaria, sobe com ele o primeiro lanço: «Fiquei logo no primeiro quarto. Para cima há mais dois». O miúdo acordou com o frio. Estava quase nu e um líquido espesso colado à pele fê-lo desconfiar. Chorou muito antes de descer. Doía-lhe o corpo e desabafou com o educador, que lhe respondeu: «Isso é do crescimento e de teres suado enquanto dormias».
Quando a festa acabou, António foi à rua despedir-se dos putos. Distribuiu um chocolate a cada um: «A mim deu-me dois, porque me tinha portado bem». Quando chegou ao lar e se despiu, uma mancha vermelha de sangue nas cuecas voltou a alarmá-lo. Insistiu com Paulo R., mas este não mostrava qualquer preocupação: «Se continuar, logo vamos ao médico».
Tempos depois acordou, mas desta vez foi a mão do educador que o roubou ao sono. Do quarto tinha acabado de sair Manuel, que também tinha estado na festa. José empinou-se e perguntou a Paulo R. o que fazia na sua cama. «Ele respondeu-me que estava só a descansar».
Falar com os mais velhos do grupo foi a tarefa mais espinhosa. O jardim em frente ao Instituto Jacob – onde antigamente os surdos esperavam diplomatas das embaixadas em volta, que a troco de transístores e outras bagatelas compravam os favores sexuais dos alunos – serve de miradouro. No horário das aulas, Renato e Clemente (amigo e irmão de José) queimam aí o tempo.
A aproximação é difícil. Clemente, a quem Paulo R., quebrando mais uma vez as regras, colocou em regime de voluntariado numa organização de solidariedade social das redondezas, não põe lá os pés há muito tempo.
Ao telefone, uma voz feminina reclama: «Tinha até já decidido ligar ao educador, porque foi ele quem fez o contrato, para lhe comunicar esta situação». Na Casa Pia, como se vê, o controlo é o mesmo de antigamente.
Passados uns dias, conseguimos chegar à fala com o adolescente. Tem 15 anos e carrega no olhar um profundo sofrimento. O carapuço da camisola cobre-lhe o rosto quase por inteiro. Sem olhar a interlocutora, demonstra um total desprezo pela vida: «Nunca fui feliz, nem serei».
As denúncias do irmão esbarram nas suas defesas: admite conhecer o ateliê, onde chegou a trabalhar, mas diz que estava sempre ao computador com Renato, com quem punha poemas e anedotas na internet. As palavras são controladas ao milímetro: «Se o meu irmão foi abusado, não vi. Já lhe disse que estava sempre ao computador».
Renato é ainda mais esquivo. Abordado quase em frente ao Lar Cruz Filipe, parece ter passado uma esponja pela memória. Mais um pouco e a carapaça ferida do jovem começava a mostrar a alma. Ao nome do político referido por José, descai-se: «Isto ainda vai dar uma grande bronca».
Mas o director do Instituto Jacob aparece de surpresa. Corta o diálogo e leva-o para dentro: «Desculpe, mas o Renato anda muito perturbado e eu tenho de o proteger».
A presença constante da jornalista do SOL, nas últimas semanas, acabou por abalar a instituição. O véu do silêncio é de novo estendido. Os alunos que falaram ficam debaixo de fogo. Nos dias seguintes, aparentemente, tudo entra na rotina. Renato volta às aulas e Clemente para o voluntariado. «Estamos proibidos de falar consigo», respondem, por telemóvel. No lar, a jornalista do SOL torna-se o inimigo a abater.
Mas há sempre alguém que não dorme: foram funcionários da Casa Pia quem, há pouco mais de um ano, começou a suspeitar do comportamento de Carlos, um aluno semi-interno. O jovem saiu da instituição quando atingiu a maioridade.
Antes disso, gabava-se que não precisava que lhe arranjassem emprego, pois na casa dos artistas conhecera gente importante que lhe assegurava o pão. Até já jantara com o político – aquele que José refere como o homem que compra revistas no quiosque de Belém.
Carlos está com 19 anos, tem pouco mais de um metro e 50 e ninguém lhe dá a idade que tem. Parece um adolescente. Filho de mãe alcoólica, muitas vezes faltava às aulas com o pretexto de lhe dar apoio. Tinha repentes de mau génio. Se algum funcionário lhe tentava travar o passo quando ele queria sair, logo ameaçava: «Não sabe com quem se mete. Olhe que conheço gente muito importante». Agora, trabalha há um mês numa papelaria, tem uma Honda CBR e está a tirar a carta de condução.
Carlos diz ter conhecido os artistas plásticos do ateliê através de um ex-casapiano, amigo de Paulo R., que também lá vive. No que diz respeito a festas, foi a muitas, mas nada viu de anormal: «São gays, nós até gozamos com eles, mas são boas pessoas». Inquirido sobre o jantar com o político de renome, arranja desculpa mal amanhada: «Conheci-o no ateliê, mas nunca fui jantar com ele, nem a minha namorada deixava!».
«Eu gostava do Paulo R.»
Piores recordações guarda Manuel, 16 anos, colega de José. Sai do Instituto Jacob em direcção ao Lar Cruz Filipe. Tem um ar compenetrado e sério, que perde na abordagem. O terror domina-o: «É jornalista ou polícia?». Acalma-se aos poucos. No café, atira-se a chocolates: são parecidos aos que lhe oferecia o mestre António no ateliê.
Nesse dia – já depois de José ter falado no Ministério Público – Paulo R. já tinha sido suspenso do lar. Quando a jornalista lhe dá a notícia, ia acabando com a conversa: «Fogo! Não pode ser. Era o meu educador de referência, tinham-me dito que estava de baixa. Eu não gostava do mestre, mas gostava do Paulo R.».
Foi o educador quem o levou a primeira vez à vivenda do mestre: «Estava lá um homem velho, subi as escadas e, no quarto, meteu-me a pilinha na boca e fez-me o mesmo que fez ao José. Mas o Paulo R. não me lembro de me ter feito maldades».
Os minutos saltam sem que lhe saia palavra. O corpo treme ao menor ruído, o olhar percorre desconfiado quem passa. Tem um profundo distúrbio emocional e é medicamentado. É o regresso ao passado que o ajusta à realidade.
Dos pais nada sabe, ou não quer saber. Manuel vivia com a avó antes de entrar na Casa Pia. Entrou para o Lar Cruz Filipe em 1999, ano da sua inauguração. Nas férias, os alunos de S.Marçal, lar de surdos no Bairro Alto, juntavam-se no novo lar ou em colónias de férias.
Paulo R., colega de curso de um irmão - que também trabalhou no instituto - de Amândio Coutinho, assessor da anterior directora do Instituto Jacob, fora colocado como educador no lar dos surdos, quatro anos antes. No Jacob, dizia-se à boca cheia que era o educador preferido da directora. Sem concluir os estudos como animador cultural, rapidamente chega a coordenador do lar.
Nessa altura, era protegido de Paulo R. o monitor Arlindo Teotónio - que vai ser julgado no final deste mês por abusos a raparigas e a jovens surdos, um dos quais foi também abusado por Carlos Silvino (arguido no primeiro processo).
Manuel conta que conheceu este deficiente auditivo durante as férias. E com ele esteve noutras casas. De repente, entra num discurso compulsivo, que permite completar o puzzle.
Tudo continua
Os mistérios da casa dos horrores não tiveram fim e, mesmo após o escândalo que desde 2002 deixou o país em transe, o crime repete-se às escâncaras. Pelo seu relato, percebe-se que também Manuel não escapou ao ‘comércio’ que Carlos Silvino mantinha com os seus clientes.
Na carrinha branca da Casa Pia (que Silvino usou até ser expulso da instituição), Manuel conta que chegou a ser levado a um apartamento na rua do Funchal, em Lisboa. Na casa, estavam cinco homens: «Mas foi só o mestre que me fez mal». No regresso, vinha sozinho. Não tinha passe: «Eles davam-me dinheiro e eu apanhava o eléctrico até Belém».Questionado se quer agora participar esses abusos às autoridades, Manuel escreve isso mesmo numa folha de papel.
Segundo o SOL apurou, o educador Paulo R. chegou a ser ouvido no decurso da investigação de abusos sexuais que envolve apenas alunos do Instituto Jacob. A ex-directora, Maria Augusta Amaral, transferiu-o então para o Lar Cruz Filipe.
Ou as crianças mentem ou o crime continua. Apenas os rostos e os cenários mudaram. Ao contrário do que disse Joaquina Madeira, a nova responsável da Casa Pia, este é, de facto, um problema nacional."
Ah... e da minha parte