Episódio V – O desmoronar de um sonho...
Postado por
Anónimo
em quarta-feira, 18 de junho de 2008
...
(... Continuação)
Cá estou eu de novo, depois de um interregno algo longo!
Reviver e rebuscar na minha memória os momentos mais dolorosos que vivi naquele País, não é tarefa fácil! Sobretudo porque foram aqueles que colocaram em risco a nossa própria vida...
Mas apesar disso, não posso deixar de os contar, mesmo que se me aperte o coração.
Escrever sobre esses momentos poderia até expurgar o sentimento de revolta que ainda hoje sinto...
Mas acho que não... Nunca os esquecerei! Não sou capaz! Nem quero.
Reviver e rebuscar na minha memória os momentos mais dolorosos que vivi naquele País, não é tarefa fácil! Sobretudo porque foram aqueles que colocaram em risco a nossa própria vida...
Mas apesar disso, não posso deixar de os contar, mesmo que se me aperte o coração.
Escrever sobre esses momentos poderia até expurgar o sentimento de revolta que ainda hoje sinto...
Mas acho que não... Nunca os esquecerei! Não sou capaz! Nem quero.
Apesar de tudo, ajudaram-me a crescer e a encarar a adversidade como aprendizagem e reflexão... sobre o sentido positivo da vida!!
O valor da nossa Vida!
O valor da nossa Vida!
O último período escolar no Liceu D. Guiomar de Lencastre, como referi no episódio anterior, foi confuso. Uns dias podia ir às aulas... outros tinha de ficar em casa, porque havia cortes nas ruas devido aos confrontos armados entre os partidos que lutavam pelo poder em Angola.
O Ministério da Educação acabou por conceder passagens administrativas aos alunos que tivessem tido aproveitamento no segundo período escolar.
Ainda guardo, em casa dos meus Pais, aquela caderneta com o respectivo carimbo!
A instabilidade das populações, sem diferenciação de cor, cada vez era maior...no meio há sempre inocentes...
A minha Mãe, sempre numa apreensão em crescendo, rogava ao meu Pai que tomasse precauções: salvar alguns haveres enviando-os para Portugal (enxoval, dinheiro, mobília, viaturas... o que fosse possível).
Após muita insistência da sua parte, o Meu Pai lá condescendeu: enviou uma mala enorme com tudo o que a minha Mãe considerava de melhor no seu enxoval... mas não se coibia de ir dizendo que a mesma regressaria quando tudo acalmasse.
A nossa vida a partir daí ficou sempre em sobressalto.
As delegações partidárias do MPLA, FNLA e UNITA estavam estrategicamente localizadas e aquarteladas: imagine-se um triângulo, em cujos vértices se encontrava uma daquelas delegações, e dentro do seu perímetro a população amedrontada.
Pois bem! A nossa residência estava mesmo no centro desse mesmo perímetro – uma localização privilegiada!
A guerra desenfreada e inconsequente, como o são todas as guerras, era levada a cabo por bombardeamentos consecutivos entre aquelas delegações: só se viam e ouviam tiros, umas vezes dispersos e longínquos de rebentamento oco (o que parecia significar que não tinha atingido nenhum edifício), outras vezes mais próximos, em que sentíamos estremecer as paredes da nossa casa (estariamos mais perto de poder ser atingidos?)...
Refugiávamo-nos dentro de casa... nem às janelas assomávamos...
À noite era pior! Era a hora de eleição para atacar de forma a não serem vistos pelos adversários das outras delegações.
O Ministério da Educação acabou por conceder passagens administrativas aos alunos que tivessem tido aproveitamento no segundo período escolar.
Ainda guardo, em casa dos meus Pais, aquela caderneta com o respectivo carimbo!
A instabilidade das populações, sem diferenciação de cor, cada vez era maior...no meio há sempre inocentes...
A minha Mãe, sempre numa apreensão em crescendo, rogava ao meu Pai que tomasse precauções: salvar alguns haveres enviando-os para Portugal (enxoval, dinheiro, mobília, viaturas... o que fosse possível).
Após muita insistência da sua parte, o Meu Pai lá condescendeu: enviou uma mala enorme com tudo o que a minha Mãe considerava de melhor no seu enxoval... mas não se coibia de ir dizendo que a mesma regressaria quando tudo acalmasse.
A nossa vida a partir daí ficou sempre em sobressalto.
As delegações partidárias do MPLA, FNLA e UNITA estavam estrategicamente localizadas e aquarteladas: imagine-se um triângulo, em cujos vértices se encontrava uma daquelas delegações, e dentro do seu perímetro a população amedrontada.
Pois bem! A nossa residência estava mesmo no centro desse mesmo perímetro – uma localização privilegiada!
A guerra desenfreada e inconsequente, como o são todas as guerras, era levada a cabo por bombardeamentos consecutivos entre aquelas delegações: só se viam e ouviam tiros, umas vezes dispersos e longínquos de rebentamento oco (o que parecia significar que não tinha atingido nenhum edifício), outras vezes mais próximos, em que sentíamos estremecer as paredes da nossa casa (estariamos mais perto de poder ser atingidos?)...
Refugiávamo-nos dentro de casa... nem às janelas assomávamos...
À noite era pior! Era a hora de eleição para atacar de forma a não serem vistos pelos adversários das outras delegações.
Viam-se os clarões das bazucas e dos balázios a vaguear nos céus, com a sua trajectória semi-eliptica. Sempre suspensos dessa trajectória, imaginávamos o que aconteceria se um deles “resolvesse”, por erro de cálculo do atirador, cair sobre as nossas cabeças.
Muitas noites seguidas passámos sem dormir, sentados, nas divisões mais interiores da casa que julgávamos protegidas pelo maior número de paredes.
Muitas noites seguidas passámos sem dormir, sentados, nas divisões mais interiores da casa que julgávamos protegidas pelo maior número de paredes.
Santa inocência a nossa! Não pensávamos senão em proteger a nossa vida a todo o custo. Como o fazíamos?! Não tinha importância!
Para nos abastecermos de mantimentos, o meu Pai saía ao clarear do dia... durante um período de tréguas aparente. Ia e regressava o mais rápido possível. Porém, não era o único a fazê-lo e para além das filas de trânsito que encontrava, tudo começava a escassear e tinha de ser pago a peso de ouro... O mercado negro instalava-se para os que se aproveitavam da situação... nem se podia regatear... era pegar ou largar! O dinheiro é que não podia faltar, caso contrário nada se levava para casa...
Tudo isto se passou durante o mês de Junho de 1974.
A generalidade dos portugueses, nossos amigos, tinha esperança que tudo não passasse de um período de transição e que a paz e o sossego voltariam quando os "grupo dos 3" se entendessem... Pensamentos normais para gente que amava aquela terra e de onde não queria partir.
Muitos integraram-se de tal maneira naquela terra que não havia distinção entre pretos e brancos. Constituíram-se amizades verdadeiras sem preconceitos de cor ou de raça...
Para nos abastecermos de mantimentos, o meu Pai saía ao clarear do dia... durante um período de tréguas aparente. Ia e regressava o mais rápido possível. Porém, não era o único a fazê-lo e para além das filas de trânsito que encontrava, tudo começava a escassear e tinha de ser pago a peso de ouro... O mercado negro instalava-se para os que se aproveitavam da situação... nem se podia regatear... era pegar ou largar! O dinheiro é que não podia faltar, caso contrário nada se levava para casa...
Tudo isto se passou durante o mês de Junho de 1974.
A generalidade dos portugueses, nossos amigos, tinha esperança que tudo não passasse de um período de transição e que a paz e o sossego voltariam quando os "grupo dos 3" se entendessem... Pensamentos normais para gente que amava aquela terra e de onde não queria partir.
Muitos integraram-se de tal maneira naquela terra que não havia distinção entre pretos e brancos. Constituíram-se amizades verdadeiras sem preconceitos de cor ou de raça...
Relembro com alguma saudade duas famílias que frequentavam a nossa casa: a do sr. Pinheiro, casado com a D. Joaquina (tinham uma filha, a Isabel, de quem os meus pais foram padrinhos de baptismo, já com 7 anos de idade) e a do sr. Afonso, casado com a D. Helena (um casal congolês, sem filhos, simpaticíssimo e de uma educação extrema).
O sr. Pinheiro era o braço direito do meu Pai, na fábrica: comandava os companheiros de trabalho, era eficiente e muito educado... E muito nosso amigo.
Teve um fim triste!... Foi denunciado por se "dar com os brancos" e ter avisado o meu Pai da emboscada que tinham montado para apanhar os brancos, que passassem no trajecto da fábrica...
Prenderam-no e torturaram-no em plena via pública à frente dos outros compatriotas... até que confessasse!! Ele não abriu a boca... Morreu aos golpes da coronha das armas dos soldados do MPLA.
Tudo isto nos foi contado, por um cunhado dele, que dias depois apareceu em nossa casa, às escondidas, para nos avisar, a pedido da D. Joaquina, sua irmã.
Ficamos consternadíssimos... Por ter salvo o compadre de ser assassinado... foi-o ele próprio!... Era um homem com muito valor moral, recto... amigo.
Eu convivia com a Isabel, filha deles. Ela aparecia lá em casa muitas vezes. Era uma miúda de olhos muito vivos, sempre alegre... gostavamos dela e ela de nós... Dizia que queria que a trouxéssemos para Portugal, se um dia voltássemos, por não se querer separar da sua família branca!!
Depois do que aconteceu ao seu pai, nunca mais a vi!!
à entrada de Julho tudo se complicou ainda mais...
A população negra, instigada por mercenários das delegações do MPLA, força dominante, começou a perseguir os moradores da rua onde morávamos, casa a casa desde o seu início.
Entravam nas casas à força da coronhada, em magotes, de arma em punho... Revistavam e revolviam todos os haveres na presença dos proprietários. Muitos deles refugiavam-se nos telhados das casas e corriam em fuga de telhado em telhado, com os algozes armados atrás...
No interior das suas casas, os que não conseguissem escapar de alguma forma, eram cercados de armas apontadas, e depois de revolvidas todas as dependências das suas casas, bastava encontrarem simples facas de cozinha para serem acusados de, com esses instrumentos, pretender matar os “patrícios”!
Quem resistisse era agredido com a coronha das armas ou lançado no meio da turbe... aí era o fim!!!
Embora os meus Pais me tentassem poupar destas visões, cheguei a vislumbrar, por entre as aberturas das persianas das janelas, algumas destas situações.
Como seria de prever, também a nossa casa foi alvo de uma tentativa de saque.
E digo tentativa porque tal acção não chegou a ser concretizada, como passo a explicar.
O ajuntamento fez-se em frente da nossa entrada... os “soldados” preparavam-se para derrubar a porta, mas foram impedidos de o fazer pelo sr. Afonso!
Colocando-se à frente da porta, sob o risco da própria vida, mas dando tudo por tudo, ouvimos dentro de casa os seus berros: “São amigos! Aqui ninguém entra! Só por cima do meu cadáver! São amigos nossos!”
Aquele magote de gente, num misto de surpresa ou de incredibilidade, estacou... os da frente de olhos esbugalhados, mantendo as armas apontadas, indecisos entre aceitar ou acreditar, vacilavam... Mas, finalmente, acabaram por acreditar...
Afinal, era um negro quem tinham pela frente!...
E era, também, Deus que estava com ele e connosco...
Arrepio-me com estas lembranças!
Estamos, hoje, vivos porque duas pessoas deram ou puseram as suas vidas à frente pela nossa.
Tudo isto nos foi contado, por um cunhado dele, que dias depois apareceu em nossa casa, às escondidas, para nos avisar, a pedido da D. Joaquina, sua irmã.
Ficamos consternadíssimos... Por ter salvo o compadre de ser assassinado... foi-o ele próprio!... Era um homem com muito valor moral, recto... amigo.
Eu convivia com a Isabel, filha deles. Ela aparecia lá em casa muitas vezes. Era uma miúda de olhos muito vivos, sempre alegre... gostavamos dela e ela de nós... Dizia que queria que a trouxéssemos para Portugal, se um dia voltássemos, por não se querer separar da sua família branca!!
Depois do que aconteceu ao seu pai, nunca mais a vi!!
à entrada de Julho tudo se complicou ainda mais...
A população negra, instigada por mercenários das delegações do MPLA, força dominante, começou a perseguir os moradores da rua onde morávamos, casa a casa desde o seu início.
Entravam nas casas à força da coronhada, em magotes, de arma em punho... Revistavam e revolviam todos os haveres na presença dos proprietários. Muitos deles refugiavam-se nos telhados das casas e corriam em fuga de telhado em telhado, com os algozes armados atrás...
No interior das suas casas, os que não conseguissem escapar de alguma forma, eram cercados de armas apontadas, e depois de revolvidas todas as dependências das suas casas, bastava encontrarem simples facas de cozinha para serem acusados de, com esses instrumentos, pretender matar os “patrícios”!
Quem resistisse era agredido com a coronha das armas ou lançado no meio da turbe... aí era o fim!!!
Embora os meus Pais me tentassem poupar destas visões, cheguei a vislumbrar, por entre as aberturas das persianas das janelas, algumas destas situações.
Como seria de prever, também a nossa casa foi alvo de uma tentativa de saque.
E digo tentativa porque tal acção não chegou a ser concretizada, como passo a explicar.
O ajuntamento fez-se em frente da nossa entrada... os “soldados” preparavam-se para derrubar a porta, mas foram impedidos de o fazer pelo sr. Afonso!
Colocando-se à frente da porta, sob o risco da própria vida, mas dando tudo por tudo, ouvimos dentro de casa os seus berros: “São amigos! Aqui ninguém entra! Só por cima do meu cadáver! São amigos nossos!”
Aquele magote de gente, num misto de surpresa ou de incredibilidade, estacou... os da frente de olhos esbugalhados, mantendo as armas apontadas, indecisos entre aceitar ou acreditar, vacilavam... Mas, finalmente, acabaram por acreditar...
Afinal, era um negro quem tinham pela frente!...
E era, também, Deus que estava com ele e connosco...
Arrepio-me com estas lembranças!
Estamos, hoje, vivos porque duas pessoas deram ou puseram as suas vidas à frente pela nossa.
Aqui deixo a minha homenagem a estas pessoas e à verdadeira Amizade.
Resta-me acrescentar, que nessa madrugada, sob a calada da noite e fazendo o menor ruído possível, fugimos para o centro da cidade e arranjamos alojamento num hotel: o hotel Zimbro.
Três dias depois, as hostes serenaram. Fomos ver como se encontrava a nossa casa. Queríamos tentar salvar o que pudéssemos, ou tivessem deixado ficar, depois de a terem (supostamente) saqueado, após aquele episódio com o sr Afonso. Levámos uma carrinha da caixa fechada para carregar o que restásse dos nossos haveres...
Surpresa das surpresas: o seu interior estava intacto!!
Tudo no sítio... apenas a parede da sala tinha um enorme buraco... um roquete tinha feito daquela parede o seu alvo, na noite em que nos tínhamos refugiado no hotel... 3 dias antes...
Por Deus, por coincidência ou por mera sorte... continuávamos vivos!!!
Acredito que tenha sido por intervenção divina!
(Continua...)
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